Falar sobre e consumir o horror asiático é um prato cheio para qualquer um que tenha o interesse de trilhar os caminhos distantes do circuito estadunidense e europeu de produções. Desde Onibaba (SHINDÔ, 1964), inúmeros filmes do gênero já foram produzidos no mundo asiático. Aqueles que tomaram maior proporção internacional acabaram — com pesar — passando pelo processo de regravações norte-americanas, assim como alguns expoentes europeus. Durante os anos 2000, acompanhamos essa diáspora da preguiça estadunidense com Ringu (NAKATA, 1998) e Ju-on (SHIMIZU, 2000) que, na opinião deste que escreve, em muito perderam ao passarem por este processo. Para entender tal caos cinematográfico, indico os livros “Fronteiras do Medo - Quando Hollywood Refilma o Horror Japonês” e “A Aceleração do Medo - O Fluxo Narrativo dos Remakes de Filmes de Horror do Século XXI”, ambos do professor Felipe Falcão.
Em 2004, o mundo todo voltou os olhos ao sinistro tailandês de ตัวอย่าง ชัตเตอร์ กดติดวิญญาณ / Shutter (PISANTHANAKUN; WONGPOOM, 2004). Com isso, Pisanthanakun firmou seu nome no panteão do horror no leste político do mundo. Shutter rendeu uma continuação em 2007 (dirigida pelos diretores originais) e um remake norte-americano em 2008, que ao menos manteve o nome original. Pisanthanakun, após isso, continuou com a direção de outros filmes do gênero, participando da coletânea The ABCs of Death, de 2012, ao lado de Srdjan Spasojevic, do ridículo e presunçoso Srpski Film / A Serbian Film (SPASOJEVIC, 2010), Xavier Gens, Ti West, Timo Tjahjanto, entre outros, totalizando 26 diretores. Anos depois, em 2021, Pisanthanakun apresenta ao mundo o terror fantástico de ร่างทรง / The Medium, um mockumentary que acompanha uma pequena aldeia, seus residentes e sua cultura. Na trama, as mulheres de uma das famílias da região são as responsáveis por manter o espírito da deusa Ba Yan, a divindade adorada pelos aldeões locais. A origem de Ba Yan é desconhecida, tendo como maior ídolo de representação uma estátua disposta na floresta próxima da localidade.
The Medium (2021), dirigido por Banjong Pisanthanakun
O início da trama foca em Nim (Sawanee Utoomma), a bastiã humana de Ba Yan, tia de Mink (Narilya Gulmongkolpech) e irmã de Noi (Sirani Yankittikan) nos afazeres das suas atividades de curandeira e xamã. Em certo ponto, Nim comenta que foi agraciada por Ba Yan após Noi não aceitar passar pelo processo de posse de seu corpo pela deusa. Após isso, Noi se aproxima do cristianismo, como forma de se proteger do possível ódio ancestral da divindade. Entendemos melhor a dinâmica entre as mulheres da família após a morte do marido de Noi e pai de Mink. Este primeiro ato é construído nos aspectos da verossimilhança, nos fazendo criar laços com as personagens em tela, atordoando todos com a dor e o estigma universal do luto.
The Medium (2021), dirigido por Banjong Pisanthanakun
Após a morte de seu pai, Mink começa a performar estranhos comportamentos que futuramente se mostram como produtos de uma possessão. Nesses momentos, Narilya brilha em tela com atuações corporais aterradoras e bizarras, lembrando um dos únicos pontos fortes de Malignant (WAN, 2021) com o show corporal da contorcionista Marina Mazepa, atuando como o questionável Gabriel.
O processo de possessão de Mink é gradual, tomando uma considerável parte das mais de duas horas de filme. Um excessivo sangramento vaginal, um breve momento de alcoolismo e o acúmulo de símbolos religiosos e demais itens no quarto da jovem (um preservativo sexual, por exemplo) dão o tom da degradação psíquica da personagem. Tão gradual quanto a possessão de Mink, é o terror de The Medium. Ao contrário dos jumpscares característicos do cinema de terror do início dos anos 2000, como foram trabalhados no filme de 2004, em 2021, Pisanthanakun nos presenteia com uma maturidade fílmica de espírito único. Os medos se constroem de forma que o espectador se sinta oprimido, deixando de lado os sustos baratos que duram tanto quanto os dois segundos da música "You Suffer", da banda de grindcore Napalm Death.
Shutter (2004), dirigido por Banjong Pisanthanakun e Parkpoom Wongpoom
The Medium (2021), dirigido por Banjong Pisanthanakun
Falar mais do que o já dito sobre The Medium é atacar a possibilidade de uma experiência de altos e baixos, entregar respostas e mais indícios de uma trama que sufoca o espectador ao poucos, como um medo que nasce do peito.
Contudo, nem tudo são flores. O terceiro e último ato é uma ebulição sistêmica e uma entrega pirotécnica da resolução apressada da trama. O argumento do documentário não é sustentado em diversas situações nestes últimos momentos. Uma ação exacerbada é entregue na tela, o filme mostra muito e se afasta dos pequenos detalhes. O ritual se transforma em uma predileção megalomaníaca pelo macabro com um exército de possessos.
Por fim, a cena de encerramento levanta a estima dos últimos momentos de mesmice. The Medium se despede do espectador com uma desesperança perene e uma falta de fé extremamente humana, nos fazendo lembrar que nossas crenças possuem a nobre capacidade da total destruição.
The Medium (2021), dirigido por Banjong Pisanthanakun
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